Prólogo

A diferença entre viver e sobreviver é clara: quem vive promete a si mesmo arriscar-se para ter várias lembranças de vida e quem sobrevive apenas mantém-se vivo fazendo as mesmas coisas de sempre. Mas uma dúvida se sobrepôe: aquele que tenta somente sobreviver das injustiças e complicações mundanas acaba adquirindo diversas lembranças, logo, ele vive?

Fernando “Farofa”, um humilde e sofrido entregador de pizzas, é exemplo desta questão. O jovem de vinte e dois anos deixou o ensino médio para ajudar seu pai – recheado de dívidas – trabalhando em variados tipos de emprego. Começou como cambista comprando e revendendo ingressos de shows; já atuou como faxineiro de um edifício empresarial; já foi assistente de pedreiro; já distribuiu galões de água mineral em condomínios e até pintando casas ele já se ocupou. Mas nenhum destes ofícios tiveram relação com seu verdadeiro desejo: ser escritor e cartunista.

Desde a sua vida colegial, Farofa – assim chamado pelos colegas por adorar churrasco – sempre leu livros por conta própria. Lia desde romances de mistério a biografias. Além de jogar futebol, entrar na internet, se divertir em lan-houses e sair para festas, outro grande prazer da vida dele era ler, escrever e desenhar. A escola pública onde estudava reservava uma biblioteca precária com poucos livros e todos eles já haviam sido lidos por Fernando. Suas notas em Produção Textual, Língua Portuguesa e Gramática eram sempre as melhores. Mas todos seus esforços para estudos se resumiam às áreas de humanas, por isso ele perdeu vários anos por causa de Matemática, Física, Química, Biologia, entre outras matérias. Farofa teve que deixar o ensino médio no final do segundo ano – repetido duas vezes – porquê o seu pai precisava pagar várias dívidas como aluguel, seguro e financiamento do carro. Com o mísero emprego de assistente de contas em uma pequena empresa não dava para solucionar o problema. Então Fernando começou a sua jornada de trabalhos para ajudar no sustento de três vidas.

Três vidas significavam o jovem, seu pai Carlos e o seu cachorro Pingão – nome atribuído ao vira-lata por ter uma mancha grande e preta na cabeça que parecia um pingo, contrastando com sua pelagem branca. Viviam somente os três em um apartamento quarto e sala, pois a esposa de Carlos o deixou depois de descobrir uma traição. Em uma área urbana bastante movimentada, os dois, pai e filho, mantinham uma relação de confiança e carinho. Mas nem sempre as idéias de Carlos entravam em acordo com as de Fernando. Isto porquê o jovem sempre quis estudar para manter um futuro próspero e saudável, diferentemente do pai que nunca estudou. Carlos morou em fazenda até precisar mudar-se pra cidade após uma grande seca que atingiu a região. Trabalhos manuais sempre tiveram maior necessidade do que trabalhos mentais. Até mudar-se pra cidade, ele fez um curso público de contabilidade e foi contratado em uma pequena empresa pela qual trabalha até hoje a mais de vinte anos. A falta de educação do pai construiu uma vida chata para o seu filho. A dependência do álcool, do cigarro e da televisão muitas vezes estragaram boas oportunidades tanto para Carlos quanto para Fernando. Mas o filho recebeu boa educação de sua mãe e, talvez, por causa dela ele manteve sua consciência aberta para sonhos, soluções, determinação e caráter. A influência educativa da mãe opôs-se à influência desleixada do pai. Farofa lamenta bastante ter perdido mais uma de suas oportunidades de futuro novamente por causa de seu pai, quando, este, traiu sua esposa. Entretanto, nem todos os problemas de Fernando foram causados pelo pai.

Farofa é um escravo do azar. Toda vez em que situações necessitam somente da sorte para dar certo, elas dão errado. Mas nem por isso o pessimismo ou a insegurança tomou conta da vida do jovem – muito pelo contrário: quanto mais socos ele toma, mais aprende a desviar. Problemas financeiros, familiares, amorosos, educacionais e, inclusive, de saúde parecem estar sempre grudados à resistência de Fernando em se livrar deles. Desde o nascimento prematuro até hoje, sua vida nunca foi relaxante. O único jeito do jovem fugir de seus problemas é fazendo o que gosta – e isto ele faz bem feito.